Sobre “yellow and red” e a dificuldade de prestarmos atenção ao que falamos
Durante a cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, transmitida ao vivo para o mundo inteiro, o Brasil deu mais uma prova de que o nosso povo é capaz de realizar grandes feitos. O espetáculo estava uma lindeza só e tudo transcorria maravilhosamente bem: apresentações impecáveis dos nossos melhores artistas, espetáculos de luz e som, coreografias de encantar a vista… Até que veio o Nuzman.
O presidente do Comitê Organizador Rio-2016, Carlos Arthur Nuzman, visivelmente emocionado durante o seu discurso e tomado pelo espírito olímpico a lutar contra o vento, a chuva e a dificuldade motora (que claramente o impedia de fazer com que o papel parasse de tremer em suas mãos), cometeu uma enorme gafe ao agradecer ao povo brasileiro por seu apoio e torcida. Disse ele:
“Todos os brasileiros nos Jogos Olímpicos vibramos juntos e vencemos juntos. Essas Olimpíadas provaram que um filho do Brasil não foge à luta. Vocês coloriram o Brasil de verde e amarelo”
O problema foi que, ao optar por alternar pequenos trechos do discurso entre português e inglês, ele acabou traduzindo o “verde e amarelo”, cores predominantes da bandeira nacional, para “YELLOW AND RED”. Como sempre, as redes sociais foram implacáveis e logo uma infinidade de postagens de cunho político e humorístico ganharam o mundo virtual – uma zoação generalizada se seguiu, como podemos ver aqui.
DESLIZES, ERROS E TENTATIVAS
Já havíamos afirmado no artigo 7 conceitos de fluência e o que você deveria saber a respeito dela que um dos mitos mais frequentes entre as pessoas é o de que Ser fluente significa falar sem erros gramaticais. Acontece que todo aprendiz de uma língua, seja ela a materna ou uma língua adicional, em seu processo de aprendizagem, é passível de cometer erros em seu uso, especialmente (mas não somente) durante o ato da fala, quando longos períodos de silêncio são pouco tolerados e temos menos tempo para planejar mentalmente aquilo que sai da nossa boca.
O termo “erro”, em seu sentido mais amplo, faz parte de todo aprendizado. Eles são vistos como elementos não somente inevitáveis, mas necessários para se chegar ao conhecimento de uma língua. Não há aquisição sem erros, e os erros são índices de um processo cognitivo de apropriação da linguagem. Erramos, e muito, durante a aprendizagem de nossa língua materna e, portanto, com as línguas adicionais não haveria de ser diferente.
Para efeitos de sistematização, é bastante comum a distinção entre três tipos de erro:
- Deslize – ocorre quando o falante é capaz de corrigir o próprio erro, caso se dê conta.
- Erro – ocorre quando o falante não é capaz de corrigir o próprio erro, embora já tenha tido sido introduzido à forma correta.
- Tentativas – ocorre quando tentamos falar algo que ainda desconhecemos na língua alvo, ou seja, por querermos expressar mensagens mais complexas do que os recursos que dispomos.
No caso do Nuzman, levando em consideração o seu grau de comando da língua inglesa demonstrado durante todo o trecho do discurso anterior à sua “gafe”, e tendo em conta que, precisamente no momento em que ela ocorreu, eu tive a nítida impressão de que ele NÃO estava a ler o papel que segurava com esforço (tem tira-teima?), que tipo de incorreção teria ele cometido? Um mero deslize, ao que me parece. Seria capaz de duvidar que o presidente do COB, acostumado a frequentar eventos internacionais e investido de tão importante função diante de delegações e organismos internacionais, não soubesse sequer as cores em inglês. Convenhamos, até a minha pequena Sofia já o sabe – e desde os três anos. Give me a break, né?!
É PRECISO MONITORAR O QUE SAI DA NOSSA BOCA
Em situações de stress ou quando estamos agindo sob o domínio da emoção, como parece ter sido o caso, é comum que a boca seja mais rápida que a cabeça. Todavia, o problema do Nuzman é, em minha opinião, o mesmo que o de uma grande quantidade de alunos e professores de idiomas que conheço, ou seja, a incapacidade (mesmo que momentânea) de se auto-monitorar e se auto-corrigir durante o ato da fala ou leitura. Tal habilidade faz-se importante, conforme o próprio Nuzman poderá atestar, e normalmente se desenvolve gradativamente, melhorando com a prática sistemática, consciente e intencional.
Normalmente há três estágios que percorremos até que possamos adquirir a capacidade de consertar nossos próprios erros linguísticos antes mesmo que eles ocorram:
- Palavras conhecidas – se dá quando, normalmente durante a fala ou a leitura, dizemos incorretamente uma palavra conhecida (e.g. “meu” ao invés de “seu”) e a interrompemos (autocontrole), percebendo que algo não está certo. Normalmente dizemos novamente a frase, ou parte dela, do início para que a mesma retome seu sentido correto.
- Palavras desconhecidas – o próximo estágio se dá quando, ao falarmos ou lermos erradamente uma palavra desconhecida (e.g. “retrógado” ao invés de “retrógrado”), desconfiamos que o seu “som” não parece certo (autocontrole), e então repetimos a palavra ou a frase, às vezes mais de uma vez para tentar apreender o seu sentido e nos fazer compreendidos.
- Palavras na cabeça antes de sair – bons leitores/falantes normalmente desenvolvem a capacidade de se auto-monitorar e auto-corrigir mentalmente antes mesmo de dizer algo em voz alta. Esses são capazes de antecipar a leitura em suas mentes e elaborar as construções antes da fala, realizando todo o trabalho dos estágios anteriores através de breves pausas (e.g. antes de palavras ou estruturas desconhecidas), antes mesmo de o erro sair pela boca.
Parece ter sido essa, então, a capacidade que faltou ao representante brasileiro durante a leitura de seu discurso, o que não tenho dúvida irá custar-lhe a paz por um bom tempo. As redes sociais não costumam perdoar deslizes e, se algo é passível de zoação, ele será zoado. Da mesma maneira, essa capacidade também não passa despercebida pelos avaliadores dos exames internacionais de proficiência linguística (TOEFL, IELTS, CAMBRIDGE, DELE, DELF, etc.), sendo inclusive utilizada como um indicador de nível de comando da língua mais elevado. Em outras palavras, sabe aquelas pessoas que apenas falam, e seguem falando sem dar a mínima importância aos próprios erros (mesmo que a mensagem seja clara)? Pois é. Elas possivelmente serão avaliadas como sendo menos proficientes do que aquelas que já desenvolveram a capacidade de auto-monitoramento e auto-correção ao falar.
E O QUE O PROFESSOR TEM A VER COM ISSO?
Tudo. É importante que os professores estejam atentos a essa necessidade e não venham a assumir uma posição de total negligência quanto aos erros de seus alunos. Isso poderia trazer problemas, pois não estimularia a autocorreção, criaria falsas expectativas de sucesso e poderia levar a um estacionamento em seus processos de desenvolvimento, podendo fazer com que eles acabem por cometer sérias gafes no futuro.
E já basta a do Nuzman, né?